segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Voz passiva


PROFª DRª VERA LÚCIA GRANDO

 

LÍNGUA PORTUGUESA

 

VOZ PASSIVA

 

DUAS ESTRUTURAS DIFERENTES QUE PARECEM IGUAIS

 

Tomemos  as duas estruturas que seguem:

 

I)      Anulou-se o contrato.

II)   Desistiu-se do contrato.

 

Se permutássemos contrato ( no singular) por contratos ( no plural) e pedíssemos que se reescrevessem os dois enunciados, a grande maioria dos falantes do Português atual não teria dúvida e escreveria:

 

III)                       Anulou-se os contratos.

IV)                       Desistiu-se dos contratos.

 

Isso é uma demonstração clara de que, para a maioria dos falantes, não há diferença entre as duas estruturas apresentadas.

Para a intuição da grande maioria, o sujeito está indeterminado tanto na primeira quanto na segunda  frase. Caso contrário, deveria haver diferença de usos.

Na variante culta escrita, porém, há diferenças nítidas entre os dois enunciados acima  transcritos:

I)      Anularam-se os contratos.

II)   Desistiu-se dos contratos.

 

Em I, o verbo foi para o plural, concordando com o substantivo contratos. Em II, o verbo ficou no singular, mesmo com o substantivo contratos no plural.

Essa diferença se explica pela seguinte razão: na variante culta escrita, o substantivo contratos é interpretado como sujeito do verbo, o que obriga a haver concordância; na variante popular, não.

 

UMA INTUIÇÃO EM DESAPARECIMENTO

 

O que ocorre de fato é que a maioria dos falantes do Português contemporâneo perdeu a intuição de que o pronome se pode funcionar como um instrumento para apassivar o verbo ou, para usar a nomenclatura consagrada, como partícula apassivadora.

Mas não é difícil recuperar essa intuição, sobretudo se considerarmos esse pronome em certas frases em que o papel de partícula apassivadora se mantém evidente até hoje.

Tomemos uma frase como esta:

 

Este clube se formou de poucos sócios.

Qualquer falante do português atual não hesitaria em dizer que a frase acima tem o mesmo sentido e a mesma estrutura que a esta outra:

 

Este clube  foi formado por poucos sócios.

 

Essa percepção é correta, pois:

a)                 em ambas o sujeito e´ este clube. Prova disso é que, em ambas, o verbo concorda com o mesmo termo ( este clube):

 

Estes clubes se formaram de poucos sócios.

Estes clubes foram formados por poucos sócios.

 

b)                 ambas admitem a seguinte transformação:

 

Poucos sócios formaram este clube.

 

Nessa transformação:

 

. o que era sujeito ( este clube ) passou a ser objeto direto;

. o que era agente da  voz passiva ( por poucos sócios ) passou a ser sujeito.

 

Ora, essa é a própria transformação da voz passiva em voz ativa, sinal de que ambas as frases inicialmente confrontadas estão na  voz passiva, com uma diferença:

. num caso caso, a voz passiva é formada pelo pronome se apassivador mais a terceira pessoa do verbo:

 
 
 
 
 
 
 
 

 

Este clube  se formou de poucos sócios.

 

Trata-se da VOZ PASSIVA SINTÉTICA.

 

. noutro caso, a voz passiva é formada pelo verbo ser mais o particípio do verbo principal ( terminação do,da,dos,das) . Trata-se da VOZ PASSIVA ANALÍTICA.

 

Esquematicamente teremos:

 

Este clube
se formou      
de poucos sócios     
voz passiva sintética
Este clube
foi formado   
por poucos sócios    
voz passiva analítica
Sujeito paciente
Verbo passivo
Agente da voz passiva
 

 

Transformadas  na voz ativa, as duas frases equivalem a :

 

Poucos sócios
formaram
este clube
Sujeito agente
Verbo ativo
Objeto direto

 

VOZ PASSIVA NO PORTUGUÊS CLÁSSICO

 

No Português clássico a voz passiva sintética coexistia com a voz passiva analítica mais freqüentemente.  Em Camões encontram-se frases como estas, que vêm parafraseadas para facilitar a compreensão:

 

Esta terra se habita dessa gente sem lei.

= Esta terra é habitada  por essa gente sem lei.

 

Este mar se navega de cruéis marinheiros

=Este mar é navegado  por cruéis marinheiros.

 

Em Vieira  encontramos:

 

A virtude ama-se dos bons.

= A virtude é amada pelos bons.

 

No Português contemporâneo, porém, quando se usa a voz passiva sintética, na grande maioria dos casos omite-se o agente da voz passiva e inverte-se a posição do sujeito, que passa a vir posposto ao verbo.

 

Exemplificando essas transformações, temos:

 

1-                 Frase inteira:

 

Essa terra
se habita
dessa gente sem lei
sujeito paciente
verbo na voz passiva sintética
agente da voz passiva

 

2-                 Frase com apagamento do agente:

 

Essa terra
se habita
 
sujeito paciente
Verbo na voz passiva sintética
agente da passiva apagado

 

3-Frase com inversão da posição do sujeito:

 

Habita-se
esta terra
Verbo passivo na voz passiva sintética
Sujeito paciente ( posposto)

 

Esta transformação, com a inversão da posição do sujeito, afetou a intuição do falante, induzindo-o a pressupor que, em frases desse tipo:

 

. o sujeito é indeterminado;

. o se  é índice de indeterminação do sujeito;

. esta terra é objeto indireto.

 

Tanto é verdade que, na fala popular, não se faz mais a concordância do verbo com o sujeito, dando origem a dois usos nitidamente distintos no Português atual.

 

Exemplos:

 

Variante popular
Variante culta
Aluga-se quartos.
Alugam-se quartos.
Vende-se apartamentos.
Vendem-se apartamentos.
Conserta-se relógios.
Consertam-se relógios.
Forra-se botões.
Forram-se botões.
Espalhou-se boatos.
Espalharam-se boatos.

 

MARCAS DA PASSIVA COM O “SE” APASSIVADOR

 

Como dissemos, no Português contemporâneo não é mais intuitivo o renhecimento do pronome  se  como  apassivador. È preciso, pois, reconhecê-lo por meio da observação planejada das marcas típicas da frase em que se aloja esse pronome.

O pronome se apassivador só ocorre em frases que apresentam as seguintes características:

. verbo na 3ª pessoa ( singular e plural);

.pronome se;

. um substantivo não precedido de preposição.

 

Presentes essas três condições, e sendo possível passar a mesma frase para a  voz passiva analítica  ( verbo ser+ particípio), temos então a seguinte análise:

 

. o se é partícula apassivadora;

. o substantivo sem preposição é o sujeito;

. a frase está na voz passiva sintética.

 

Nesse caso, o verbo estará sempre em concordância com o sujeito.

 

Exemplo:

 

Não se apanham moscas com vinagre.

 

Nessa frase há:

. um verbo na 3ª pessoa ( apanham);

.o pronome ( se);

. um substantivo não precedido de preposição (moscas).

 

A mesma frase pode ser parafraseada assim:

 

Moscas não são apanhadas com vinagre.

 

Então:

. o se é  partícula apassivadora;

.moscas  é o sujeito;

 

A frase está na voz  passiva sintética.

 

 

ÍNDICE DE INDETERMINAÇÃO DO SUJEITO

 

Observe o trecho que segue:

 

Um famoso jogador do Santos Futebol Clube disse que, no momento, recusaria qualquer proposta para ir jogar  na Europa, alegando que não se sai  de um clube no momento do campeonato.

Note que o sujeito dos verbos recusaria, ir jogar e alegando é determinado: nos três casos está elíptico (ou apagado); nos três casos poderia vir explicitado por ele   ( um famoso jogador dos Santos Futebol Clube). O mesmo não se dá com o sujeito de sai, que não pode ser explicitado pelo mesmo pronome (ele) dos casos anteriores. Se, entretanto, retirarmos o se de junto do verbo, o sujeito passa a ser determinado elíptico  (ele), como os outros.

Como se nota, o pronome se nesse trecho cumpre a função de indicar que o sujeito do verbo ao qual se liga está indeterminado: não pode ser preenchido por nenhuma palavra do contexto. Por isso, em casos como esse, o pronome se é analisado como índice de indeterminação do sujeito.

Analisando as frases apenas sob o ponto de vista do significado, o pronome se apassivador e o índice de indeterminação do sujeito produzem o mesmo efeito: indeterminam o agente responsável pela ação verbal. Mas, do ponto de vista da estrutura sintática, as frases são diferentes.

Quando o “se” funciona como índice de indeterminação do sujeito, não ocorrem na frase as três condições que se dão quando se trata de partícula apassivadora e, portanto, não é possível converter a frase para a voz passiva com o verbo ser.

 

Exemplo:

Desistiu-se do contrato

 

Nessa frase há um verbo na  terceira pessoa (desistiu), há o pronome se, mas não há um substantivo desacompanhado de preposição. Além disso, não é possível converter a frase para a voz  passiva analítica. O sujeito do verbo não pode vir explicitado pelo pronome ele. Então:

 

. o se é índice de indeterminação do sujeito;

. o sujeito é indeterminado;

. a frase está na voz ativa,

. do contrato é objeto indireto.

 

Note-se ainda que, quando se funciona como índice de indeterminação do sujeito, o verbo a que se liga fica sempre na 3ª pessoa do singular.

 

 

Observação : reprodução de texto na íntegra.

 

Referência:

 

PLATÃO , Francisco. Português. Gramática e Texto. Ensino Médio . Livro – texto, 2ª série.São Paulo, Anglo, 2001, págs.86-89.

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